Índio Mura

domingo, 28 de outubro de 2012


Resenha de Florêncio Vaz sobre VALENTIA (Ed. Grua), livro escrito e ilustrado por integrantes da I Caravana da Memória Cabana em 2010.

O Livro
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Acabei de ler o romance Valentia, de minha amiga Deborah Kietzmann Goldemberg. De tão bom, eu não consegui lê-lo na velocidade normal com que leio os outros livros. Li Valentia em menos de uma semana, e por pouco não fiquei na rede lendo-o direto. Gostei muito do estilo, que junta um depoimento ficcional supostamente escrito por um rebelde cabano, em 1840, e outros feitos por comunitários da região Oeste do Pará, em 2010, todos tendo a guerra da Cabanagem (1835-1840) como foco principal - esta guerra que ainda hoje está muito viva nas mentes dos moradores do interior da região. Este recurso me pareceu muito interessante, não só como literatura, mas como Antropologia também. Aliás, a autora, que é antropóloga, soube captar muito bem a fala dos moradores das comunidades ribeirinhas, indígenas e quilombolas, que escutou em 2010 durante a Caravana da Memória Cabana[1], no Oeste do Pará, na mesma região onde aconteceram muitos combates desta guerra.

A história é narrada em dois planos. Em um, o herói Samauma nos conta sobre a sua vivência na guerra, no calor dos acontecimentos, em meados do século XIX. No outro, na parte contemporânea do livro, há trechos onde sentimos claramente que são os moradores das margens dos rios que contam as suas memórias, mesclando mitos, lendas, fantasias, fatos históricos e filosofia indígena. É claro que é a autora que tece os fios da narrativa, cria conexões entre os diferentes relatos, enriquece e aumenta a história (mas não “inventa”, no sentido de falsificar), dando vida novamente ao tesouro que é a memória oral destes povos. Afinal, não se trata de uma compilação de relatos feitos pelos moradores do rio Tapajós.

Na parte histórica, o personagem principal que relata na primeira pessoa os acontecimentos é fictício, mas que viaja por vilas e cidades conhecidas e fala dos personagens históricos da guerra com muita familiaridade. Samaúma, o motor do livro, tem a cara que tiveram muitos dos combatentes cabanos: filhos de índios com brancos, cristianizados mas conservando muito da cosmologia indígena e que mantinham um forte (re)sentimento contra o domínio dos portugueses e seus descendentes. O herói nos cativa por ser destemido, sonhador. Ele é o rebelde cabano idealizado e, ao mesmo tempo, é mostrado na sua face humana, com vacilações e contradições. O que mais me atraiu em Samaúma foi essa sua face de um cabano real. Penso que a sua história não é muito diferente daquela de personagens históricos envolvidos na guerra.

Deborah Kietzmann Goldemberg criou personagens que podem ser bem coerentes com aqueles tempos de guerra. Um dos pontos altos do livro são as emoções e explosões de tensões e conflitos entre os próprios rebeldes e líderes da Cabanagem e, também, destes com os outros moradores, os supostos inimigos. Estes conflitos não raro acabaram em tragédia. Imaginando-se no meio da guerra, onde não há lugar para a bondade e a compaixão, típicas da formação cristã recebida nas aldeias missionárias, a autora, falando através dos personagens, expressa sentimentos e dramas bem reais e humanos. Os rebeldes cabanos aparecem no livro não como bons moços ou heróis libertadores sem manchas, mas como pessoas humanas nas suas circunstâncias. Eles matam sem sentimento de culpa, mas são capazes também de dar a sua vida pela causa que entendem ser justa. Nem por isso aqueles homens e mulheres deixam de nos cativar, e talvez até por isso mesmo é que nos atraem tanto. Ponto para a autora.
A obra é uma viagem pelo imaginário das gentes que vivem às margens dos rios da Amazônia. Pelas suas páginas, passeamos entre visagens, tesouros enterrados, praias que ainda em 2012 continuam vermelhas devido ao sangue derramado durante a guerra... O leitor se sente envolvido nesta atmosfera, e não tem como não se sentir tentado a visitar também esta Amazônia de populações que só são “tradicionais” nos artigos e teses acadêmicas ou no discurso de conveniência de ONGs e instituições do Estado. O leitor se sente estimulado a também viajar a esta Amazônia profunda e escutar suas vozes, sua sabedoria e suas aspirações.

Estes ribeirinhos não ficaram parados em 1840. Os seus mitos e os espíritos da floresta convivem com a modernidade. A autora nos mostra, por exemplo, que naquelas aldeias já chegou o turismo, que está sendo aproveitado pelos indígenas como uma fonte de renda, aliado à venda de artesanato, e com o auxílio das novas tecnologias, como computador, internet e Skype.

Um dos momentos mais divertidos da obra é o diálogo entre um líder indígena e um representante de uma revista do Sudeste dirigida a amantes de um tipo de turismo ecológico ou radical. Ao invés de um nativo acanhado e desinformado, vemos um típico agente ou empresário que negocia descontos e tenta por tudo convencer o interlocutor que o seu “produto” – passeio na floresta, rituais debaixo de uma maloca e artesanato “natural” de boa qualidade etc. – pode até ser caro, mas vale a pena ser comprado. Tanto que aqueles indígenas já estariam pensando até em aumentar o tamanho da maloca, para poder comportar os turistas que só aumentam de número.

É em momentos como esse, que Deborah Goldemberg mostra que entende mesmo da Amazônia real, da Amazônia contemporânea, de indígenas que recuperam o orgulho da sua origem e tradição, sem abrir mão de um padrão de consumo e idéias típicas das sociedades urbanizadas e capitalistas, de indígenas que até se pintam de “índios” (bem ao gosto de turistas ávidos pelo exótico e selvagem) para continuar sendo indígenas do seu jeito.

Recomenda-se a leitura urgentemente.

Detalhes:
Nome do livro – Valentia (visitar o blog: http://valentiaoromance.blogspot.com.br )

Autora – Deborah Kietzmann Goldemberg (Visitar blog: http://ressurgenciaicamiaba.blogspot.com )
Editora: Grua

Onde adquirir: www.grualivros.com.br


[1] A Caravana da Memória Cabana reuniu um grupo de aproximadamente 20 pessoas (entre antropólogos, historiadores, fotógrafos, cineastas, estudantes e líderes indígenas) que no fim de maio de 2010 passou pela cidade de Santarém (PA) e mais 8 comunidades no baixo rio Tapajós, durante 10 dias, gravando depoimentos dos moradores sobre a guerra da Cabanagem. O objetivo era recolher imagens e relatos que pudessem ser aproveitados em diferentes mídias, como documentários em vídeo, exposições fotográficas, romances e textos acadêmicos sobre a memória da Cabanagem. Mais informações: http://caravanacabana.blogspot.com.br , ou falar com o coordenador do projeto Memórias Cabanas: florenciovaz@uol.com.br

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